quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Procuradoria acha carcereiro da Casa da Morte

Comissão da Verdade do Rio quer tomar depoimento de 'Camarão', que estava no Ceará

ADRIANO BARCELOSDO RIO
Identificado e ouvido pelo Ministério Público Federal no último fim de semana em Fortaleza, o carcereiro da Casa da Morte de Petrópolis, na região serrana do Rio, deverá prestar depoimento também para a Comissão Estadual da Verdade fluminense.
"O que se sabe é que havia um revezamento das equipes que atuavam na Casa da Morte. Ele (Lima) seria o único quadro permanente do local. É um arquivo vivo, que viu e ouviu tudo", disse o presidente da Comissão Estadual da Verdade, Wadih Damous.
Antônio Waneir Pinheiro Lima, de 71 anos, é soldado reformado do Exército e tomava conta dos presos políticos que eram encaminhados para as instalações militares chamadas de CIE (Centro de Informações do Exército).
O CIE constituiu-se em um dos mais sanguinários centros de tortura e execução de detentos estabelecidos pelo regime militar brasileiro (1964-1985) e para lá eram encaminhados presos tidos como líderes dos grupos de resistência à ditadura.
O número de pessoas que morreram na Casa da Morte é desconhecido, mas as estimativas são de pelo menos 20 vítimas. Com vida, apenas uma presa saiu: Inês Etienne Romeu, militante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), hoje com 72 anos. Torturada e presa por 96 dias em 1971, Inês relatou em 1979 os abusos sofridos.
Na ocasião, teve especial destaque em seu relato a atuação de Lima na Casa da Morte. Segundo ela, o soldado a estuprou duas vezes enquanto esteve encarcerada. Na época, ela disse que o autor dos abusos se chamaria "Wantuir" ou "Wantuil", e que seu apelido era Camarão.
Lima --ou Camarão--, é do Ceará, mas continuou vivendo no Estado do Rio mesmo após a desativação do CIE, que operou entre 1971 e 1974. Desde o início de 2014, ele tinha conhecimento de que o Ministério Público Federal e a Comissão Estadual da Verdade estavam em seu encalço.
Os investigadores obtiveram então informações de que Lima viveria no município de Araruama (RJ). Antes que fosse possível chegar até ele, o militar deixou a cidade e fugiu para o Nordeste.
"Conseguimos localizá-lo em Araruama e ele percebeu que estava sendo alvo das atenções do MPF e nossas, o que o fez parar no Ceará. Vamos tentar muito ouvi-lo", afirmou Wadih Damous.
Lima era homem de confiança do principal responsável pela Casa da Morte, o tenente-coronel Paulo Malhães, que morreu durante um assalto em abril deste ano. Responsável por implementar o CIE, Malhães assumiu em entrevistas e depoimentos as violações aos direitos humanos que ocorreram em Petrópolis.
Folha, 12.11.2014.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

CLÓVIS ROSSI: A verdade e suas versões

Brasil deveria imitar a Itália e divulgar todos os documentos disponíveis sobre os anos de chumbo
A melhor definição de reportagem que conheço pertence a Carl Bernstein, um dos dois repórteres do "Washington Post" que desvendaram o caso Watergate e, com isso, levaram à renúncia do presidente Richard Nixon.
Em palestra na USP, Bernstein a definiu como "a melhor versão da verdade possível de se obter".
É isso. Começa por duvidar implicitamente que exista uma VERDADE, assim maiúscula e incontrovertida. E continua por propor um exaustivo trabalho para chegar o mais perto possível de uma versão verossímil.
Se essa definição é correta, as comissões da verdade instaladas no Brasil estão com um problema: em vez de chegarem à melhor versão da verdade possível de se obter sobre a morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, chegaram a duas "verdades", diametralmente opostas, o que significa que uma delas é necessariamente falsa.
Para a Comissão Nacional da Verdade, JK foi vítima de um acidente. Para a Comissão da Verdade da Câmara Municipal de São Paulo, foi assassinado.
Acredito na boa fé de ambas as comissões, o que me leva a crer que as conclusões opostas se deveram à dificuldade de se apurar os fatos depois de tantos anos decorridos (Juscelino morreu em agosto de 1976, há 38 anos).
O acidente é a versão mais anticlimática. Mais sedutora era a hipótese de um conjunto de crimes que teriam vitimado os três líderes civis que, àquela altura, se uniam contra a ditadura: João Goulart morreu em dezembro de 76, apenas quatro meses depois de JK, enquanto Carlos Lacerda morreu em maio de 1977.
Ou seja, em nove meses, desapareceram os principais nomes políticos e não-revolucionários da oposição ao regime.
Tentador, por isso, concluir que foram todos vítimas de um complô sinistro. As diferentes conclusões sobre o caso JK só contribuirão para manter no ar a teoria conspiratória, mais fascinante que mortes naturais ou por acidente.
É por isso que se torna ainda mais necessário que o Estado brasileiro copie decisão desta semana do novo governo italiano, que decidiu desclassificar todos os documentos relativos a uma série de atentados nos anos de chumbo, entre 1969 e 1984. Ou seja, são acontecimentos mais ou menos contemporâneos às mortes de Juscelino, Goulart e Lacerda.
Quem não quer ou não gosta da verdade pode até argumentar que, na Itália, é mais fácil abrir os arquivos porque o terrorismo era de particulares (a extrema direita e a Máfia), enquanto no Brasil o próprio Estado praticou terrorismo.
Na Itália, os documentos a serem liberados referem-se a oito grandes atentados, como a matança da estação ferroviária de Bolonha (tradicional feudo comunista), em que morreram 85 pessoas; e o massacre de Ustica, a derrubada, aparentemente por um míssil, de um avião comercial que fazia o trajeto Bolonha/Palermo, com 81 passageiros a bordo, ambos em 1980.
Tanto no Brasil como na Itália, só a liberação dos arquivos permitiria chegar à verdade, que é sempre melhor do que versões, ainda mais quando são conflitantes. Folha, 24.04.2014.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Tiro no pé: Por que rever a Lei da Anistia é um erro

ALFREDO SIRKIS -  06/04/2014  02h58

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RESUMO Julgamento de crimes cometidos pelo Estado ocupa centro do debate nos 50 anos do golpe no Brasil. Para deputado e ex-guerrilheiro, é improvável e incongruente levar à prisão "militares de pijama" por fatos daquela época quando foco deveria ser fazer cessar a tortura, vigente desde antes do regime militar e ainda existente.
*
Foi francamente irônico o resultado da recente pesquisa do Datafolha sobre a Lei da Anistia. Há uma maioria favorável a revê-la para poder julgar os torturadores e uma maioria, maior ainda, para rejulgar a nós, ex-guerrilheiros pelas ações que cometemos.
Por um instante me vi, com meus 63 anos, no tribunal, respondendo pelos dois sequestros de embaixadores dos quais participei, aos 19, e que propiciaram a libertação de 110 presos políticos, alguns eventualmente destinados à Casa da Morte. Na época fui condenado duas vezes à prisão perpétua (com mais 30 anos de lambuja para a encarnação subsequente) pelas auditorias militares.
Costumo dizer que, daquilo tudo, não me orgulho nem me envergonho. Mas já tive pesadelos horrendos: a organização me ordena a executar o embaixador suíço, Giovanni Enrico Bucher -um sujeito boa-praça que não gostava da ditadura- porque tinham se recusado a libertar todos nossos presos. Tenho uma pistola na mão, mas não quero me tornar um assassino. Acordo coberto de suor frio.
Graças a Deus, aquilo terminou bem, e nossos 70 companheiros foram mandados a Santiago do Chile porque consegui convencer nosso comandante, Carlos Lamarca, a aceitar a recusa de alguns dos presos "estratégicos" e negociar a sua substituição por outros que a ditadura Médici aceitava soltar. Hoje vejo num sequestro desse tipo, de um diplomata inocente, ameaçado de execução, mesmo sob uma ditadura, um ato no limite do terrorismo, no que pese o nosso desespero de então. Em alguns casos, esse limite foi ultrapassado. Penso no marinheiro inglês metralhado na praça Mauá, na bomba de Guararapes ou na execução daquele militante que queria deixar uma organização.
BALANÇA
É possível equiparar esse punhado de atos criminosos à tortura generalizada, institucionalizada, sancionada desde o nível presidencial que se abateu não apenas sobre nós, resistentes armados, como sobre opositores sem violência, como no caso do PCB, e milhares de "simpatizantes" e outros, presos por equívoco?
Claro que não; mas essa anistia "recíproca" foi resultado de uma correlação de forças dos idos de 1979, um acordo político que permitiu a libertação dos presos e nossa volta do exílio.
O primeiro problema de rever essa lei para poder julgá-los, 40 e tantos anos depois dos fatos, é a repercussão sobre outros complicados processos de redemocratização pelo mundo afora. Frequentemente, para remover um regime de força, é preciso pactuar com os que ainda ocupam o poder e ainda têm enorme capacidade de fazer dano.
As torturas e execuções na África do Sul e na Espanha não foram menores do que no Brasil -é o mínimo que se pode dizer- mas lá a opção foi não colocar os antigos repressores nos bancos de réus.
Na África do Sul, a lógica da Comissão da Verdade foi reconstituir os fatos e obter dos responsáveis pelo odioso apartheid a confissão, não com vistas à condenação penal, mas à expiação moral e a superação conjunta de tudo aquilo. Também foram colocados na mesa para uma catarse de superação coletiva certos episódios sangrentos dentro da maioria negra.
Confesso que senti satisfação ao ver o general Jorge Rafael Videla terminar a vida numa prisão argentina. Penso, no entanto, que a razão decisiva para julgar (uma parte) dos comandantes daquele regime assassino foi o prosseguimento das conspirações militares já no período democrático, com quarteladas durante os governos de Raul Alfonsín e Carlos Menem.
No Chile, alguns poucos foram julgados, mas o general Augusto Pinochet Ugarte continuou comandando o Exército por um bom tempo na transição e só sofreu embaraço jurídico no Reino Unido, jamais no Chile.
Não há uma formula única, "correta". No que pese o sentimento de busca de justiça das vítimas e seus familiares -que respeito profundamente, à diferença daqueles que querem apenas surfar politicamente na causa- trata-se de uma decisão jurídica, por um lado, e de uma questão política, por outro. Juridicamente, o STF já se pronunciou a esse respeito. Politicamente, vejo a revisão como contraproducente e concordo plenamente com a presidente Dilma Rousseff quando se manifesta contrária à anulação da anistia.
NARRATIVAS
Desde os anos 80, vem prevalecendo, grosso modo, a narrativa da esquerda sobre os "anos de chumbo". Os verdugos dos porões do DOI-Codi viveram vidas existencialmente miseráveis. Uma parte, desproporcional, já morreu de morte morrida; outros tornaram-se criminosos comuns, bicheiros, contrabandistas.
No estamento militar há um sentimento geral de condenação àquela máquina de torturas e execuções -que acabaram inclusive atentando fortemente contra a hierarquia militar e sujando a imagem das Forças Armadas-, embora sem nenhuma propensão a aceitar a narrativa da esquerda. Não iremos convencer os militares a adotar, agora, um maniqueísmo reverso ao deles, na época.
Por todo ordenamento jurídico brasileiro, hoje seria totalmente impossível -a não ser que se viesse a adotar toda uma nova legislação de exceção- condenar esses militares de pijama, na maioria septuagenários ou octogenários, a servir penas na prisão.
Num país onde assassinos abjetos como os que torturaram e mataram o jornalista Tim Lopes saem da prisão por "progressão de pena" em quatro ou cinco anos, fazer um ex-general ou coronel do DOI-Codi ir para a cadeia por crimes cometidos há mais de 40 anos é improvável e incongruente.
Qual o risco político de coloca-los agora no banco do réus?

Tendo prevalecido a nossa narrativa, desde os anos 1980, seria da lógica jornalística agora ouvir a deles, desde o palco e holofotes que agora lhes estão sendo propiciados. Alguns se arrependem. Qual a sinceridade disso? Há os que assumem friamente seus crimes, e aí temos a novidade, o gancho para difundir sua contranarrativa: "Isso mesmo, torturei, cortei dedos, matei, joguei no rio, no mar e daí? Guerra é guerra".
Se há uma maioria de brasileiros que fica compreensivelmente horrorizada, há uma minoria que se identifica e se sente reconfortada em ver, afinal, sua "verdade" difundida agora com todas as letras. "Levanta-se a bola" para figuras como Ustra ou Malhães, propicia-se farta cobertura de mídia para que eles se comuniquem com uma extrema-direita desorganizada, difusa, mas real. Ganham espaço para bulir com aquele sentimento que leva o público do primeiro "Tropa de Elite" -quando José Padilha ainda não pagara tributo ao politicamente correto- a aplaudir as torturas infligidas ao traficante com um saco plástico.
A prioridade no Brasil, em relação à tortura, não é tentar, inutilmente, mediante a revisão da anistia, colocar na cadeia um ou outro torturador do DOI-Codi dos anos 1970, mas fazer cessar aquela tortura que continua ocorrendo hoje, agora, a todo momento, em dezenas de delegacias de roubos e furtos ou destacamentos de policiamento ostensivo, contra marginais pobres e negros.
Aquela velha tortura de sempre, de antes e de depois do Estado Novo e do regime militar, quando ela foi, excepcionalmente, infligida também à classe média intelectualizada e politizada.
Nesse sentido, apesar de todos os bons e altivos argumentos e da justificada indignação de quem sofreu e gostaria de ver punidos aqueles criminosos, a revisão da "anistia recíproca" de 1979 é um erro político cujo maior problema é, na prática, dar uma segunda chance e propiciar um público renovado para uma narrativa que já enterramos nos anos 1980. É, no fundo, um tiro no pé.
ALFREDO SIRKIS, 63, é autor de "Os Carbonários" (Record) e deputado federal pelo PSB-RJ. 

Folha, 06.04.2014

terça-feira, 8 de abril de 2014

HÁ 50 ANOS General Kruel é cogitado para ocupar a Presidência da República 8.abr.1964


DO BANCO DE DADOS - O nome do general Amaury Kruel passou a ser cogitado ontem para ocupar a Presidência. Ao mesmo tempo em que os senadores Arthur Virgílio e José Ermírio de Moraes iniciaram em Brasília a articulação do nome do comandante do 2º Exército, no Rio um grupo de generais propuseram que Kruel concorresse ao pleito.
O senador Lino de Matos deve apresentar a Kruel uma lista de 25 senadores e 100 deputados que o apoiam.Kruel esteve ontem no Rio em reunião com os generais Arthur da Costa e Silva e Humberto de Alencar Castello Branco. A seguir, falaram com o presidente Ranieri Mazzilli.
Folha, 08.04.2014

Amaury Kruel vendeu o Presidente João Goulart e traiu não por ideologia, mas por dólares.



O Instituto Presidente João Goulart, através de João Vicente Goulart, recebe a denúncia do então Major do Exército Erimá Pinheiro Moreira, esclarecendo em detalhes os motivos que levaram o general Kruel, que era amigo do Presidente João Goulart, mudar de posição em menos de 12h. 

Mineiro de Alvinópolis, Erimá Pinheiro Moreira, hoje com 94 anos e anistiado como Tenente Coronel Farmacêutico, servia no Hospital Geral de São Paulo em 31 de março de 1964 sob as ordens do então comandante do II Exército, General Amaury Kruel. Paralelamente, Erimá era proprietário de um laboratório farmacêutico particular, próximo ao hospital e a sede da FIESP. 

Para aqueles que ainda imaginam terem os golpistas civis e militares agido por idealismo, este corajoso depoimento revela em detalhes o que aconteceu naquele dia trágico para a democracia brasileira.
Fonte: http://www.institutojoaogoulart.org.br/video.php?id=254
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Comissão aponta 17 centros clandestinos usados na ditadura: Relatório mostra que Forças Armadas usaram casas e sítios para torturar e desaparecer com corpos de presos

Pelo menos dois dos centros foram usados para cooptar e pagar militantes de esquerda por informações
LUCAS FERRAZDE SÃO PAULO
A Comissão Nacional da Verdade apresentou ontem um estudo que aponta 17 centros clandestinos utilizados em todo o país pelas Forças Armadas na ditadura (1964-85) para torturar presos e desaparecer com os corpos dos militantes executados.
Elaborado pela historiadora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) Heloísa Starling, assessora do grupo, o relatório, ainda preliminar, afirma que a criação e o funcionamento desses centros faziam parte da política de enfrentamento dos militares contra os opositores.
Eles eram montados em casas, apartamentos, sítios e fazendas com a participação de militares e, em alguns casos, policiais que atuavam na repressão. A maioria dos imóveis era emprestado por empresários amigos do regime.
De acordo com o organograma apresentado pela comissão, todos os centros clandestinos eram de conhecimento dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica. Além dos presos que morreram nos locais, o relatório identifica os agentes da repressão que atuaram em cada um deles.
"Os centros não eram autônomos, subterrâneos ou controlados por paramilitares, como podem sugerir alguns, mas faziam parte da estrutura de inteligência e repressão da ditadura", afirmou Heloísa Starling.
O centro mais famoso foi a Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), que operou entre 1971 e 74. Pelo menos 14 militantes morreram no local. A única sobrevivente é Inês Etienne Romeu, que passou por lá entre maio e agosto de 1971.
Na zona sul de São Paulo, a Fazenda 31 de Março era mantida por militares e policiais. Na propriedade, em 1970, morreu sob tortura Joaquim Câmara Ferreira, à época o mais importante nome da esquerda armada.
No Pará, durante a campanha do Exército no combate à guerrilha do Araguaia, pelo menos 24 guerrilheiros foram executados, depois de presos, na Casa Azul. Os restos mortais deles nunca foram encontrados.
Além de ocultar a prisão de opositores, os centros eram usados para sessões de tortura, execuções e esquartejamentos, forma de tentar impedir a identificação futura dos corpos, conforme relatou à comissão um ex-militar.
Mas as casas clandestinas também eram usadas para cooptar militantes de esquerda e transformá-los em infiltrados dentro das próprias organizações. O relatório aponta uma casa no bairro do Ipiranga, em São Paulo, e um apartamento na área central de Brasília montados com essa finalidade.
De acordo com o estudo, os informantes da esquerda (chamados de "cachorros") frequentavam os centros para passar informações, receber instruções dos agentes e apanhar o dinheiro que recebiam pelos serviços.
Folha, 08.04.2014

quarta-feira, 2 de abril de 2014

A ditadura venceu


01/04/2014  03h00

Hoje é o dia que marca, afinal, os 50 anos do golpe militar ocorrido em 1º de abril de 1964. Durante as últimas semanas, a sociedade brasileira foi obrigada a ler afirmações de personagens como o senhor Leônidas Pires Gonçalves, primeiro ministro do Exército pós-ditadura, insultando o país ao dizer que: "a revolução (sic) não matou ninguém" e que ela teria sido uma necessidade histórica.
Antes, correntistas do banco Itaú, uma instituição tão organicamente ligada à ditadura que teve um de seus donos, o senhor Olavo Setúbal, nomeado prefeito biônico da cidade de São Paulo, receberam uma singela agenda onde se lia que o dia de hoje seria o aniversário da dita "revolução". Ninguém, nem nas Forças Armadas nem no setor empresarial que tramou e alimentou o golpe teve a dignidade de pedir à sociedade perdão por um regime que destruiu o país.
É claro que ainda hoje há os que procuram minimizar a ditadura afirmando que ela foi responsável por conquistas econômicas relevantes. Raciocínio semelhante foi, por um tempo, utilizado no Chile.
Tanto em um caso quanto no outro esse raciocínio é falso. A inflação brasileira em 1963 era de 78%. Vinte anos depois, em 1983, era de 239%. O endividamento chegou, ao final da ditadura, a US$ 100 bilhões, legando um país de economia completamente cartelizada, que se transformara na terceira nação mais desigual do mundo e cujas decisões eram tomadas não pelo ministro da economia, mas pelos tecnocratas do Fundo Monetário Internacional chefiados pela senhora Ana Maria Jul. A concentração e a desigualdade se acentuaram, o êxodo rural destruiu nossas cidades, a educação pública foi destroçada, a começar por nossas universidades.
Mas o maior exemplo desse revisionismo histórico encontra-se na crença, de 68% da população brasileira, de que aquele era um período de menos corrupção. Alguém deveria enviar para cada uma dessas pessoas os dossiês de casos como: Coroa-Brastel, Capemi, Projeto Jari, Luftalla, Banco Econômico, Transamazônica e Paulipetro.
Tudo isso apenas demonstra o fracasso que foi, até agora, o dever de memória sobre a ditadura.
Mas o que poderíamos esperar de governos, como o de Fernando Henrique Cardoso, cujos fiadores eram Antônio Carlos Magalhães e Jorge Bornhausen, e de Luiz Inácio Lula da Silva/Dilma Rousseff, que tem em José Sarney um de seus pilares e em Antonio Delfim Netto um de seus principais conselheiros?
Como esperar uma verdadeira política contra a ditadura de governos que dependem de figuras vindas diretamente da ditadura?

Foi assim, de maneira silenciosa, que a ditadura venceu. 


Folha, 01.04.2014


vladimir safatle
Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às terças.

quinta-feira, 27 de março de 2014

O orgulho do assassino: Confissões do coronel Malhães chocam pelo sadismo, mas não por contar o que já se sabia


Mesmo para quem lidou durante muitos anos com a questão dos direitos humanos, no Brasil e na América Latina, é chocante ler o depoimento do coronel reformado Paulo Malhães à Comissão Nacional da Verdade (folha.com/no1430795).
Mas choca apenas pelo sadismo revelado pelo oficial e pela frieza com que confessa crimes bárbaros. O fato de que havia torturas e assassinatos já era arquiconhecido e, portanto, não pode provocar surpresa, a não ser em distraídos, desavisados ou viúvas da ditadura, como os que promoveram a fracassada reedição da Marcha da Família.
De todo modo, creio que seja uma das primeiras vezes, talvez até mesmo a primeira, em que um torturador --e não um torturado-- admite os fatos como os fatos se passaram. Com o adicional de que era um oficial cuja função lhe permitia ter pleno conhecimento de tais fatos.
José Carlos Dias, o advogado que o interrogou na CNV, chamou o coronel reformado de "sádico e exibicionista".
É verdade, mas é preciso ter claro que o sadismo e o exibicionismo podem ser características específicas de um ou de outro oficial (há mais Malhães por aí), mas a violência contra os opositores do regime era uma política de Estado, não uma iniciativa dos porões.
Estes só acrescentavam o sadismo, mas o esquema geral tinha a aprovação das cúpulas militares e, por extensão, da cúpula do poder político, à época ocupada por generais.
Matar, torturar, fazer desaparecer --tudo isso era um sistema, bem documentado, de resto, nos livros desse notável Elio Gaspari sobre o período militar, o mais completo balanço jamais publicado a respeito (acabam de ser lançadas reedições atualizadas).
É por isso que se torna inaceitável o silêncio das Forças Armadas a respeito do que ocorreu no período.
Alegar que o que houve no Brasil, em dados momentos dos anos 60 e 70, foi uma guerra contra a subversão não resiste a uma análise séria. Tanto é assim que o coronel Malhães descreveu como os torturadores faziam para dificultar ou impossibilitar a identificação dos torturados que matavam.
Ora, mesmo numa guerra, há normas e códigos, entre os quais o de devolver os cadáveres.
Se trataram de fazê-los desaparecer ou de dificultar a identificação, só pode ser porque sabiam que estavam fazendo algo ilegal, errado, absurdo, de uma violência (no caso contra os familiares em busca de informações) adicional à já insuportável violência que é o assassinato e/ou a tortura.
Vamos ser claros: houve, sim, alguns choques armados entre opositores e repressores, mas a maior parte das mortes foi assassinato puro e simples.
Tudo bem que houve uma anistia para ambos os lados e que a maioria aceita que ela era indispensável para poder virar a página e tocar adiante o país.
Ainda assim, não deixa de ser incômodo saber que um assassino e torturador confesso anda por aí livre e sem ter sido submetido ao menor constrangimento. Um assassino que se orgulha dessa condição. crossi@uol.com.br
Folha, 27.03.2014
www.abraao.com

Luta armada foi resistência legítima à ditadura militar

EX-GUERRILHEIRO QUE PARTICIPOU DE AÇÕES COMO O SEQUESTRO DE EMBAIXADOR AMERICANO DEFENDE QUE TORTURADORES DO REGIME SEJAM JULGADOS
BERNARDO MELLO FRANCODO RIO
Líder estudantil em 1968, o jornalista Cid Benjamin, 65, participou do sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, a mais ousada ação da luta armada.
Ele diz que a guerrilha foi uma forma legítima de resistência à ditadura militar. "Eu me orgulho de ter participado deste movimento." Preso e exilado por nove anos, Benjamin hoje atua na Comissão da Verdade do Rio e defende que os torturadores sejam julgados por seus crimes. Lançou suas memórias, "Gracias a la Vida" (José Olympio), em 2013.
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Folha - O sr. pertenceu a uma geração que optou pela luta armada após o AI-5. Por quê?
A sociedade, em 1968, já era amplamente contrária à ditadura. Pensávamos que o Brasil estava caminhando para uma guerra revolucionária. O Vietnã e a Revolução Cubana eram coisas muito fortes nas nossas cabeças. Dado o grau de insatisfação com o regime, a desigualdade e a miséria, pensávamos que um processo de luta armada no campo e na cidade fosse aglutinar mais e mais gente. A longo prazo, constituiríamos um exército popular que poderia fazer a revolução. A história mostrou que nossa perspectiva estava incorreta.

Como foram as primeiras ações armadas e o sequestro do embaixador americano?
Apesar da nossa inexperiência, foram um sucesso. A repressão estava despreparada. Os bancos não tinham portas giratórias. A gente assaltava e levava as armas dos guardinhas. O sequestro surgiu da preocupação com os presos políticos, muitos sob tortura. Um dia, estava com o Franklin Martins [ex-ministro no governo Lula] em uma rua de Botafogo e passou o carro do embaixador americano, com bandeirinhas no capô e sem segurança nenhuma. A ideia foi usá-lo como moeda de troca por nossos presos, especialmente o Vladimir [Palmeira, líder estudantil de 1968]. A execução foi muito simples, e a devolução, digna de filme de ação americano. Quando nos livramos da perseguição, tomamos uma cerveja para comemorar o êxito da ação.

O que fez depois?
Fiquei dois meses entocado, mas tinha virado a bola da vez. O MR-8 era a organização mais ativa no Rio, e sabiam que eu era o responsável pelo setor armado. Quando fui preso, ouvi no DOI-Codi que era o militante com mais ações armadas no Rio. Desde que entrei, comecei a ser torturado.

Como foram as torturas?
Ao chegar, sangrava muito na cabeça. Chamaram um médico, Amílcar Lobo, que costurou a frio. Depois, foram dias de tortura. Pau de arara, choque elétrico e afogamento eram o cardápio principal.

Em seu livro, o sr. diz que os torturadores não eram monstros. Por quê?
Não havia um só um tipo de torturador. Havia os sádicos, perversos, monstros. Mas também havia jovens oficiais do Exército, imbuídos da luta contra o comunismo da Guerra Fria. Não me surpreenderia se hoje alguns estiverem arrependidos do que fizeram.
Ainda havia os policiais antigos, que eram os melhores torturadores, torturaram bandidos a vida inteira. Eram capazes de sair dali e fazer um churrasco com os amigos, serem bons pais, bons avôs.
Ao dizer isso, não estou passando a mão na cabeça dos torturadores. Estou mostrando como nossa sociedade é atrasada e permite que eles tenham vida social relativamente normal.
O pior da tortura não são os maus-tratos, é que ela tenta desumanizar o ser humano. Através da dor física, procura fazer com que o preso renegue seu sistema de valores, se despersonalize. O objetivo é quebrar o torturado como pessoa.

Os torturadores ainda devem ser julgados por seus crimes?
Um país que não conhece sua história está condenado a repetir seus erros. O Brasil está começando tarde. A ditadura acabou em 1985, e a Comissão da Verdade só foi criada em 2012. Os torturadores devem ser julgados e, se culpados, condenados. Não digo isso porque tenha ódio deles, mas porque acredito que o futuro da tortura está ligado ao futuro dos torturadores. Se eles forem condenados, as pessoas vão pensar duas vezes antes de torturar.

Sem luta armada, a ditadura teria acabado mais cedo?
Fujo dessa armadilha. É como culpar um torturado pela tortura, ou culpar a resistência por barbaridades nazistas em territórios ocupados. A luta armada, embora equivocada politicamente, foi uma parte legítima da resistência. Eu me orgulho de ter feito parte deste movimento.

quarta-feira, 26 de março de 2014

Site publica 10 mil documentos norte-americanos sobre regime: Projeto das universidades Brown e Estadual de Maringá entra no ar hoje

FABIANO MAISONNAVE - DE SÃO PAULO
Em 1968, a CIA concluiu que a "agitação" nas universidades brasileiras se devia a "estudantes profissionais", que passavam anos sem se formar graças às baixas exigências acadêmicas.
No mesmo ano, diplomatas americanos testemunhavam o grande entusiasmo do empresariado pelo AI-5, o mais drástico instrumento de exceção da ditadura militar.
Esses relatos são apenas dois exemplos do acervo de 9.872 documentos norte-americanos produzidos entre 1963 e 1977 sobre o Brasil que o projeto inédito "Opening the Archives" (abrindo os arquivos) passa a publicar na internet a partir de hoje.
Resultado de uma parceria entre as universidades Brown (EUA) e Estadual de Maringá (UEM), do Paraná, o projeto digitalizou e indexou material do Departamento de Estado e da CIA. Quase todos estavam acessíveis apenas nos Arquivos Nacionais, na região da capital Washington.
Por enquanto, o site tem cerca de 2.000 documentos. O acervo ficará totalmente disponível até 10 de abril, quando será lançado oficialmente durante simpósio da Brown sobre a ditadura.
"O projeto oferece a possibilidade de uma análise mais detalhada sobre os contatos cotidianos entre os americanos e os brasileiros que assumiram o poder em 1964", disse à Folha o historiador James Green, da Brown.
"Com o livre acesso a essa documentação, será possível fazer um acompanhamento mais exato sobre como Washington apoiou e às vezes criticou as novas políticas dos governos de Castello Branco, Costa e Silva e Médici".
Para fazer a digitalização, 12 pesquisadores americanos e brasileiros passaram três meses em Washington. O custo foi de US$ 75 mil, bancado pelas duas universidades.
Faltam ainda 10 mil documentos. Green estima que a segunda etapa custará US$ 50 mil, mas, por enquanto, não há financiamento.
O endereço da página na internet é: library.brown.edu/openingthearchives

Militar diz que coronel matou jornalista em 82

DO RIO
Em depoimento à Comissão Estadual da Verdade (CEV), do Rio, o coronel da reserva do Exército Paulo Malhães afirmou que o coronel do Exército Freddie Perdigão foi o responsável pela morte do jornalista Alexandre von Baumgarten, em 1982.
No depoimento, em que confirmou ter participado de ações para desaparecer com corpos de vítimas de tortura, Malhães disse que só uma delas deu errado.
"Foi no caso do jornalista de O Cruzeiro'. Deu cagada e o corpo voltou", disse. Segundo o coronel da reserva, os agentes, capitaneados por Perdigão, chegaram a pensar em simular um afogamento.
"Mas havia marcas de tiros no corpo. Só quem jogava os corpos ao mar era a Aeronáutica", contou.
O corpo de Baumgarten foi encontrado na praia da Barra da Tijuca, no Rio. Ele saíra para pescar em uma traineira com a mulher, Jeanette Hansen, e o barqueiro Manoel Valente Pires. Os corpos dos dois jamais foram encontrados.
Baumgarten tinha ligações com o SNI e, em 1979, havia comprado os direitos do título da revista "O Cruzeiro" para torná-la pró-regime. O projeto, no entanto, fracassou.
Folha, 26.03.2014
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Coronel admite ter matado na ditadura: Em depoimento à Comissão da Verdade, Paulo Malhães diz que corpos eram mutilados para evitar reconhecimento

Oficial reformado contraria entrevistas e diz ter descumprido ordem para sumir com ossada de Rubens Paiva
BERNARDO MELLO FRANCODO RIO
Em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, o coronel reformado do Exército Paulo Malhães, 76, admitiu ontem que torturou, matou e ocultou cadáveres de presos políticos durante a ditadura militar (1964-1985).
Ele disse não se arrepender de nada e narrou como funcionava a chamada Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), centro de torturas clandestino onde teriam sido assassinadas cerca de 20 pessoas.
Levado em cadeira de rodas e usando camisa cinza, terno bege e óculos escuros, o militar chocou integrantes da comissão pela frieza com que respondia às perguntas.
"Quantas pessoas o senhor matou?", quis saber o ex-ministro José Carlos Dias. "Tantas quanto foram necessárias", respondeu o coronel. "Arrepende-se de alguma morte?" "Não." "Quantos torturou?" "Difícil dizer, mas foram muitos", devolveu.
Sem demonstrar incômodo, Malhães defendeu a tortura como método de investigação e explicou como mutilava cadáveres para evitar que fossem identificados.
"A tortura é um meio. Se o senhor quer saber a verdade, tem que me apertar", disse, acrescentando que aprova o método para presos comuns.
Questionado sobre as mutilações de cadáveres, descreveu a prática como uma "necessidade" e disse que os corpos não eram enterrados "para não deixar rastros".
"Naquela época, não existia DNA. Quando você vai se desfazer de um corpo, quais partes podem determinar quem é a pessoa? Arcada dentária e digitais", disse.
"Quebrava os dentes. As mãos, [cortava] daqui para cima", explicou, apontando as próprias falanges.
Chamando as vítimas da repressão de "terroristas", Malhães disse não ter remorsos. "Quando vejo uma pessoa reclamar que um ente querido morreu, pergunto: se tivesse ficado ao lado da esposa e dos filhos, isso teria acontecido?", acrescentou.
Parentes de desaparecidos, ex-presos políticos e a única sobrevivente da Casa da Morte, Inês Etienne Romeu, foram à sede do Arquivo Nacional para ouvir o oficial. Ele só aceitou falar diante da comissão e dos jornalistas.
Confrontado com nomes e fotos de vítimas, Malhães alegou que não conseguia reconhecê-los. Também se recusou a indicar colegas da repressão, com raras exceções.
Numa delas, disse ter recebido ordem do coronel Coelho Neto, então subchefe do CIE (Centro de Informações do Exército), para ocultar a ossada do ex-deputado Rubens Paiva, morto em 1971. Mas afirmou não ter executado a tarefa, contrariando o que disse recentemente aos jornais "O Dia" e "O Globo".
Ele também apontou o coronel Cyro Guedes Etchegoyen, chefe de contrainformações do CIE, como comandante da Casa da Morte.
"Mesmo com tantos anos de advocacia, me choquei com a descrição da mutilação de arcadas dentárias e digitais", disse o ex-ministro José Carlos Dias. "Eu não diria que ele foi corajoso. É um exibicionista, um sádico."
Em depoimento à Comissão da Verdade no dia 15, a ex-presa política Inês Etienne Romeu, apontou seis agentes da ditadura como torturadores que trabalhavam na Casa da Morte.
Folha, 26.03.2014
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1964...2014

ELIO GASPARI
Jango foi deposto pela carta golpista que estava nas mãos de vários jogadores, mas a direita fez a canastra
A deposição do presidente João Goulart continua a ser um tema divisivo na política brasileira porque, meio século depois, alguns itens da agenda de 1964 continuam presentes, ao vivo e a cores. Registre-se que o elemento primordial, detonador e desfecho da revolta, foi o fato de que os dois lados jogavam com a carta da intervenção militar. Jango tinha um "dispositivo" nos quartéis e seus adversários tinham conspirações desconexas, até que um general voluntarioso implodiu a ordem constitucional. Não existe mais essa carta, mas há outras que, na essência, derivam de pensamentos autoritários. Vale a pena visitá-los, pois permitem que se descubra, em 2014, o código genético do golpismo de 1964.
O primeiro é a falta de respeito à vontade popular. Há 50 anos, uma das provas de que Jango era um esquerdista estava na sua defesa do voto para o analfabeto. Um iletrado não podia ter o mesmo peso político que um doutor. Veio a ditadura e cassou os votos de todos para a escolha do presidente. Em 1969, depois que o presidente Costa e Silva ficou incapacitado, os generais sabiam que o voto de um analfabeto não valia o de um doutor, mas descobriram que o de um coronel não valia o de um general e o de um general que comandava uma mesa não valia o de outro, que comandava uma tropa. Resultado: elegeram o general Emílio Médici sem que se saiba como essa escolha foi feita. A desqualificação do voto alheio está aí até hoje.
Há 50 anos havia uma repulsa ao Congresso e aos políticos. Um lado achava que o povo não sabia votar e elegia ladrões. O outro achava a mesma coisa e havia nele quem quisesse que a rua arrancasse uma Constituinte para fazer as reformas para o bem do país, permitindo inclusive que Jango fosse candidato à Presidência. Hoje as duas visões sobrevivem e no ano passado a doutora Dilma flertou com uma Constituinte exclusiva com adereços plebiscitários.
Passaram-se 50 anos e aquilo que se chamava de infiltração comunista no governo denomina-se hoje aparelhamento do Estado pelo PT. Havia infiltração comunista na Petrobras em 1964, houve um período de petropirataria durante o tucanato e hoje há um comissariado petista na empresa.
1964 continua divisivo porque em 2014 há pessoas que veem nas instituições democráticas a origem e sede dos males. Isso vale tanto para o sujeito que não confia na vontade popular que escolhe presidentes petistas como para comissários que veem nessa mesma vontade uma massa incapaz de eleger um Congresso que vote as leis necessárias para que o partido desenvolva o que chama de projeto estratégico. O golpista é antes de tudo um cético em busca de surtos de força.
Em 1964 havia dois candidatos à Presidência: Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek. Muita gente preferia um golpe a Lacerda e, do outro lado, sonhava-se com o golpe que evitaria a volta de JK. Um terceiro grupo queria virar a mesa contra os dois. Deu no que deu e vinte anos depois todos achavam que tanto Lacerda como JK teriam sido melhores que a ditadura. Como a "Revolução Redentora" teria sido coisa dos militares, todos os civis viraram democratas. Felizmente, em 2014 a carta dos quartéis saiu do baralho. O DNA golpista contudo não desaparece, mesmo enfraquecido, transmuta-se.
Folha, 26.03.2014

Falta de punição para crimes da ditadura militar polariza debate

Em evento da Folha, general diz que não há por que se desculpar
DE SÃO PAULO
Em debate promovido anteontem, em São Paulo, pela Folha sobre os 50 anos do golpe de 1964, os três expositores convidados concordaram num aspecto: a ideia de que a ditadura militar (1964-1985) modernizou a economia brasileira. Houve, porém, mais discordância que consenso no debate.
De um lado, a jornalista Mariluce Moura, atual diretora de Redação da revista "Pesquisa Fapesp" e ex-integrante da Ação Popular, grupo de esquerda de influência católica que combatia o regime. Do outro, o general da reserva Luiz Eduardo Rocha Paiva, professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército.
Entre os dois, prometendo fazer uma análise com "mais distanciamento", o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, pesquisador da UFMG.
Mariluce disse que, aos 22 anos, no início de sua gravidez, foi sequestrada, presa e torturada por representantes do Estado. Lembrou-se de seu marido, Gildo Macedo Lacerda, assassinado em decorrência de tortura dentro de um quartel do Exército em 1973.
O general Paiva fez uma defesa enfática do regime e listou nomes de pessoas que morreram devido a ações da luta armada e "que nunca são lembradas ou indenizadas".
O historiador Rodrigo Sá Motta procurou mostrar que, durante a ditadura militar, o Brasil se modernizou do ponto de vista econômico, tecnológico e industrial. Mas afirmou que "toda essa modernização poderia ter sido alcançada num regime democrático".

Jango ganharia em caso de eleição, diz FHC: Durante debate em São Paulo, ex-presidente mesclou recordações pessoais sobre o golpe de 64 e análises políticas

Presidencialismo hoje no país é de 'cooptação', afirmou tucano, que criticou número de ministérios e partidos
DO COLUNISTA DA FOLHA
Se tivessem feito eleições em março de 1964, João Goulart "provavelmente ganharia". A avaliação foi feita ontem pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em seminário sobre os 50 anos do golpe de 1964, no Sesc Consolação, em São Paulo.
FHC ressalvou não saber se foram realizadas pesquisas de opinião. A sociedade, de todo modo, "estava dividida". Ao longo da sua intervenção, em que misturou recordações pessoais e análise política, FHC ressaltou as incertezas que marcaram os dias anteriores ao golpe militar.
No dia 13 de março, quando Jango anunciou seu programa de reformas num comício na Central do Brasil, havia velas acesas em quase todas as janelas da zona sul do Rio, lembra FHC: sinal das apreensões da classe média frente ao "perigo vermelho".
Ele se preparava para viajar de trem a São Paulo; passaria pela imensa concentração de pessoas reunidas em apoio a Jango. O comício "pelas diretas", disse num curioso ato falho, "foi enorme".
No trem, FHC encontrou-se com personalidades da esquerda. A confusão era tanta que muitos acreditavam que o golpe seria dado por Jango, e não pelos militares. Em São Paulo, ele veria professores de esquerda da USP articulando manifesto contra Goulart.
Nem os militares estavam certos de seu sucesso. A posição de Amaury Kruel, comandante do 2º Exército, era desconhecida; Castello Branco era tido como legalista.
CENÁRIO
Avaliações equivocadas não faltavam. O Partido Comunista julgava que os industriais se opunham ao capitalismo americano. O sociólogo Hélio Jaguaribe julgava que o regime tinha como objetivo a desindustrialização. Previsões como a do economista Celso Furtado, julgando que o regime duraria "dois anos", eram descartadas como absurdamente pessimistas.
Demorou-se, concluiu FHC, para entender o que tinha acontecido. E, se é possível dizer que a imagem dos militares como "salvadores da pátria" desapareceu, ele não se sente tranquilo com relação à saúde institucional do país.
O princípio de que todos são iguais perante a lei mal se estabeleceu. Formou-se um presidencialismo de "cooptação", com mais de 30 partidos e 39 ministérios, sem debate de uma agenda nacional. As classes estão fragmentadas, num sistema em que o eleitor real não é o cidadão, mas instituições como empresas, igrejas e clubes de futebol.
Podemos entrar numa "anomia", alertou o filósofo José Arthur Giannotti, seu interlocutor. O que significa falsa democracia, falso Congresso e falso governo. "Não vejo como continuarmos sem reformas institucionais", disse.
Ausente o sociólogo Francisco de Oliveira, por razões de saúde, o debate --organizado pelo Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), com patrocínio do BNDES e do governo federal-- terminou com os aplausos do público, que ocupava pouco mais da metade do teatro.

A DITADURA CRONOLÓGICA


A escolha de 1985 como o marco final é funcional para todos os que desejam ocultar, silenciar ou suprimir as conexões civis da ditadura
O senso comum pode imaginar que marcos cronológicos são naturais. Contudo, eles são inventados pelos que pensam a história, segundo interesses determinados, embora nem sempre explicitados.
O caso da mais recente ditadura brasileira é ilustrativo.
Os soldados do general Mourão começaram a mover-se na noite de 30 de março de 1964. No dia seguinte, 31, o golpe estava vitorioso. No entanto, os vencidos, exercitando a ironia, não hesitaram em datar a vitória do golpe em 1° de abril, dia da mentira. A versão pegou e está em quase todos os livros didáticos.
Controvérsia mais complexa trava-se a respeito de quando acabou a ditadura. A versão dominante, uma espécie de "pensamento único", assinala a posse de José Sarney em março de 1985 como o "fim da ditadura". Caracterizada como "militar", a ditadura teria terminado seus dias com a posse de um "civil" na Presidência da República.
No entanto, é razoável afirmar que a ditadura acabou quando foram revogados os atos institucionais, no início de 1979. Desapareceram, então, os instrumentos de exceção que configuram as ditaduras, regimes que se baseiam no fato de que os governos fazem e desfazem leis a seu bel prazer, quando e como querem, apenas exercendo a força.
Ora, depois de 1979, deixou de haver um estado de exceção no Brasil. Subsistiu um Estado de Direito autoritário, sem dúvida, marcado pelo chamado "entulho autoritário", que só seria revogado pela Constituição de 1988. Entre 1979 e 1988, o país conheceu um período de transição --ainda não havia um Estado de Direito democrático, mas já não existia ditadura.
Mas por que, então, quase todo o mundo fala em 1985 como o fim da ditadura? A escolha de 1985 é funcional para todos os que desejam ocultar, silenciar ou suprimir as conexões civis da ditadura.
Elas são muito visíveis desde 1964: basta lembrar as Marchas da Família com Deus pela Liberdade e o apoio ostensivo de veneráveis instituições como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) à instauração da ditadura.
Sem contar a participação ativa de quase todos os grandes jornais e de lideranças políticas, empresariais e eclesiásticas. Ao longo do tempo, ainda que sofrendo mutações, e consideráveis, os apoios civis à ditadura permaneceram consistentes, desfazendo-se só pouco a pouco.
Por outro lado, o marco de 1985 também agrada a setores de esquerda que, desde 1964, procuraram caracterizar a ditadura como "militar", num recurso legítimo de luta política, onde se procurava isolar os milicos no poder. Tratava-se de enfraquecer os adversários, e não propriamente de compreender o processo histórico.
Formou-se, assim, uma ampla e heterogênea "frente", política e acadêmica, configurando o fim da ditadura em 1985, mesmo que o marco seja de uma inconsistência que salta aos olhos, pois José Sarney, como se sabe, e ele também, foi um líder da ditadura durante o tempo em que ela durou, até 1979.
Devagarinho, camaleonicamente, ele, acompanhado por muitos outros, migrou para as oposições antiditatoriais, depois que a ditadura tinha acabado. A posse de Sarney foi apenas mais uma mudança molecular, entre outras, que levaram a 1988, quando, aí sim, pode-se afirmar que se encerrou a transição que desembocou na restauração democrática no país.
Questionar o consagrado marco de 1985 não é tarefa simples. Envolve não apenas enfrentar uma verdadeira ditadura cronológica, formada por militantes de direita e de esquerda, mas também a força da inércia que se traduz, no pensamento social, pela preguiça intelectual.